sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Um exemplo de matéria "isenta"




Podem falar que se trata de mania de perseguição ou de teoria conspiratória, mas assistindo a uma matéria sobre as cotas raciais no Jornal da Globo, fica evidente como ela é enquadrada para parecer objetiva e imparcial, mesmo que, de forma sutil, apresente uma tese que alerta para os riscos dessa ação afirmativa nas universidades.  

Aparentemente, a reportagem obedece a todos os princípios jornalísticos, escutando os dois lados da questão. Mas, dos quatro entrevistados, apenas a ministra da secretaria de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Barros, defende de fato as cotas raciais. “Elas são um instrumento de política pública bastante poderoso, para produzir inclusão em alguns espaços, isso foi provado com a questão do acesso ao ensino superior”, disse a ministra.

A segunda entrevistada é a procuradora de Justiça, Roberta Kaufmann, que defende as cotas sociais como ação afirmativa para inserir o negro no ensino superior. Ela ainda alerta para o “perigo” da racialiazação do país com as cotas raciais. É bom lembrar que a procuradora é a mesma que, a serviço do DEM, ajuizou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB). Nela, o partido pede que essas ações afirmativas sejam declaradas inconstitucionais.

O terceiro entrevistado é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que disse apoiar as cotas, mesmo sem especificar a modalidade. O detalhe é que o repórter enfatiza: “FHC defendeu as cotas, mas fez uma ressalva importante”. No entanto, a fala do tucano contraria esse suposto apoio às cotas raciais:

“Sou a favor, acho que temos que discutir a maneira de aplicar essas cotas porque não é aceitável tribunais raciais. Quem é que vai saber se esse é branco, esse é mulato. No Brasil isso não cabe. Nos Estados Unidos é pelo sangue. Aqui não é. Pela aparência, aparência é tão variável. Então precisa tomar cuidado”.

Continuando a matéria, o repórter fala que alguns líderes do movimento negro acham que é preciso mais tempo para avaliar definitivamente a eficácia das cotas. Fabiano Dias Monteiro, sociólogo e ex-coordenador do Disque Racismo/RJ, assim como Roberta Kaufmann e FHC, reforça a ideia de que as cotas raciais podem provocar a racialização do país:

“Acho que precisamos de mais tempo e de mais discussão social para poder perceber qual seu nível de eficácia e quais são os riscos principalmente no sentido de produzir ou não uma sociedade racializada”. O interessante no depoimento de Monteiro é que ele é considerado uma liderança do ativismo negro que questiona as cotas raciais.

Nem precisa estudar teorias da comunicação, para enxergar a seleção de falas e o tratamento que a matéria recebe a fim de comprovar a tese de que as cotas raciais são uma política deste governo, sem respaldo junto à opinião pública e que não encontra consenso nem entre os membros do movimento negro.

Outro aspecto importante é que o diretor da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel, é autor do livro Não Somos Racistas em que ele defende a tese da democracia racial e contesta a validade das cotas raciais. Não posso esquecer também de mencionar o fato de que tanto Kamel quanto Roberta fazem parte do Instituto Millenium, entidade mantida pelos grupos de comunicação Abril e Globo, que, segundo informação do próprio site, pretende “atingir a opinião pública conscientizando-a sobre os valores que considera primordiais para o fortalecimento da democracia e para o desenvolvimento do país”.

A mídia é uma importante voz no debate público, porém, não podemos ser ingênuos para pensar que ela se comporta como “campo neutro”. Independente de ser a favor ou contra as cotas raciais nas universidades, seria interessante se a sociedade entendesse a lógica que norteia o jornalismo brasileiro, que pretende parecer isento, mas, na verdade, tem um lado. 

2 comentários:

Paulo César disse...

O problema é que a discussão sobre temas que colocam na berlinda o racismo no Brasil é discutido com muita má vontade por pessoas que se consideram não negras, e também por políticos que não querem envolver com uma questão tão espinhosa como essa que não gera votos. A cota para negros ingressarem nas universidades é recebida pela população brasileira com muita desconfiança, isto porque exacerba e expõe mais às claras o racismo velado que existe no Brasil. Quando se faz alguma ação pública para diminuir a desigualdade cada vez mais crescente de oportunidades entre brancos e negros no Brasil, torna-se perigoso a "racialização". Creio que o problema é "explicitação" do racismo já existente e incutido na mentalidade o brasileiro.Para haver avanço nas discussões sobre racismo no Brasil tem que debater sim. O problema só se resolve, ao menos em parte, se houver disposição para discutir o problema e dialogar de modo construtivo. Essa é uma realidade social, pois mexe profundamente com classes sociais estagnadas pela discriminação ativa e eficaz. É preciso desarmar o sistema operativo que promove as diferenças sociais de modo discriminador, através de leis que progridam no sentido de esclarecer e garantir que o ato preconceituoso não cabe mais na sociedade brasileira, e que o exercício de democratização legítima é um direito constitucional que não deve ser mascarado por interpretações capciosas e intolerantes.

Michel Carvalho disse...

Caro Paulo Cesar,

Concordo com você quando menciona o fato de que ao promover o debate sobre as cotas, de certa forma, estamos admitindo como sociedade, que vivemos num país desigual entre brancos e negros. O que me preocupa nesse tipo de enfoque, é que a mídia tem o potencial de construir consensos e assim influenciar o debate público em torno das ações afirmativas.