quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Memórias, encenações e um personagem singular

Pedro de Almeida, garimpeiro de 81 anos de idade, comanda como mestre de cerimônias o velório, o cortejo fúnebre e o enterro de João Batista, que morreu com 120 anos. O ritual sucede-se no quilombo Quartel do Indaiá, distrito de Diamantina, Minas Gerais. 

Com uma canequinha esmaltada, ele joga as últimas gotas de cachaça sobre o cadáver já assentado na cova: “O que você queria taí! Nós não bebeu ela não, a sua taí. Vai e não volta pra me atentar por causa disso não. Faz sua viagem em paz”.

Dessa maneira acaba o sepultamento de João Batista, após 17 horas de velório, choro, riso, farra, reza, silêncios, tristeza. No cortejo, muita cantoria com os versos dos vissungos, tradição herdada da áfrica. Descendente de escravos que trabalhavam na extração de diamantes, nas Minas Gerais do tempo do Brasil Império, Pedro é um dos últimos conhecedores dos vissungos, as cantigas em dialeto banguela cantadas durante os rituais fúnebres da região, que eram muito comuns nos séculos 18 e 19.

Garimpeiro de muita sorte, Pedro já encontrou diamantes de tesouros enterrados pelos antigos escravos, na região de Diamantina. Mas, o primeiro diamante que encontrou, há 70 anos, o tio com quem trabalhava o enterrou e morreu sem dizer onde. Depois disso, vive sempre em uma sinuca: para reencontrar o diamante só se invocar a alma de seu tio João dos Santos. “É um diamante e tanto, você precisa ver que botão de mágoa”. Ao conduzir o funeral de João Batista, Pedro desfia histórias carregadas de poesia e significados metafísicos, que nos põem em dúvida o tempo inteiro: João Batista tinha pacto com o Diabo?; O Diabo existe?; estamos sozinhos, ou as almas também estão entre nós?; como Deus inventou a Morte?

A atuação de Pedro e seus familiares frente à câmera nos provoca pela sua dramaturgia espontânea, uma auto-mise-en-scène instigante. No filme, não se sabe o que é fato e o que é representação, o que é verdade e o que é um conto, documentário ou ficção, o que é cinema e o que é vida, o que é africano e o que é mineiro, brasileiro.

O que diz o diretor:
“Na virada de 2004 para 2005, estava enredado pelo livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Famoso por atrair ao sertão de Minas Gerais gente de todo o mundo, o livro fez com que eu e minha mulher imprimíssemos uma viagem em busca do sertão mítico e profundo retratados pelo escritor.

No caminho, encontrei Pedro Vieira, conhecido como Pedro de Alexina, guardião das tradições fúnebres que os africanos trouxeram para a região de Diamantina no século 18. Esse encontro transformou minha viagem em uma expedição ao imaginário da tradição oral que remonta aos povos andantes. Essas histórias emendam-se umas nas outras, misturando os contos populares ao mundo vivido e a uma miríade de mitos de diferentes origens.

Dois anos depois, em maio de 2007, voltei ao Quartel do Indaiá, comunidade remanescente de quilombo, para fazer um filme com seu Pedro. Foram 30 dias de filmagens. Mediado pela imaginação, pela memória dos antepassados e de suas histórias, Pedro me levou a um lugar onde o sertão encontra a África de séculos atrás, onde a morte encontra a vida e onde Deus e o “Outro” coexistem”.

Em tempo: Conferi Terra deu Terra come no sábado e não tive inspiração suficiente para escrever algo à altura da magnitude desse filme instigante. Mas reproduzo aqui o release, divulgado no site oficial do longa e o depoimento do diretor Rodrigo Siqueira.

Em exibição no Espaço Unibanco Miramar 18h

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